14/05/09

Maria Isabel

Feitas as compras procurei a "caixa" que tinha a fila menor. Coloquei-me atrás duma silhueta pequena e franzina que também lá estava numa tarde de sábado. A vantagem de fazermos compras num local à porta de casa é que apesar de ser um supermercado, conhecemos as meninas da caixa e elas também nos reconhecem com um cumprimento e um sorriso. Algumas até já sabem se é para entrega e quando nos vêem entrar chegam a pedir ao colega que aguarde "que esta senhora é rápida" e "mora já aqui ao lado".
A fila com menos pessoas era uma "caixa" prioritária. Como eu tinha poucas coisas, a menina conhece-me e as outras estavam complicadas fiquei. À minha frente a figura franzina continuava direita e firme à espera. De repente a menina da caixa fez um sinal e disse "pode passar à frente que a senhora tem prioridade". A figura franzina olhou para trás e disse-me que passasse à frente dela. Foi aí que eu vi que era a Maria Isabel. Por mais que insistíssemos que era com ela que estavam a falar, ela dizia que não e que podia esperar. Finalmente, convenceu-se ou não quis armar confusão. Mesmo assim foi dizendo que tinha idade mas não era preciso, que tinha tempo e podia esperar. "Eu tenho 90 anos e o meu marido tem 100! Hei-de chegar aos 100 e ele aos 110", dizia!
Enquanto as pessoas da frente faziam conversa sobre o bom estado da senhora com aquela idade, eu e a menina da caixa, sorriamos. Quando Maria Isabel se afastou direita e sorridente com as suas compras, eu recordei a entrevista dada por altura da comemoração dos 100 anos do marido.
"Era um rapaz muito pretendido ali na Foz. Veio-me buscar para dançar e eu para o arreliar e mostrar que era diferente das meninas que andavam sempre à sua volta e a cair-lhe nos braços, disse-lhe que não podia aceitar o convite porque ele não me tinha sido apresentado. Ele resolveu logo ali a situação e pediu a um amigo comum que o apresentasse."
Casaram dois anos depois.
"Eu gostei logo dele, pela maneira sensível como tratava as pessoas. Era um rapaz muito sabido, mas era também muito humano e nunca procurou abusar da minha simplicidade". "Eu só sabia que, quando ele fazia um filme, nós ficávamos cheios de dificuldades. E isso foi uma injustiça muito grande que lhe fizeram..."
Maria Isabel mulher do Manoel que há-de chegar aos 100 e ele aos 110! Um doce de senhora nas palavras da menina Paula "caixa nº1", fila prioritária.

8 comentários:

Luísa A. disse...

Não sei se viu ontem, GJ, a entrevista da Constança Cunha e Sá ao António Barreto. Falou-se, entre outras coisas, do aumento da esperança de vida e dos seus riscos. Pela primeira vez, discordei da perspectiva do AB. Ele acha que é perigoso que se lute por um prolongamento da vida sem qualidade, que se corre o risco de formar sociedades compostas, em mais de um terço, por «grandes velhos», necessariamente dependentes de terceiros na sua maioria. Eu acho que não. Primeiro, porque uma das mais naturais e legítimas ambições do homem é adiar a morte. Depois, porque cada década que se ganha é imediatamente seguida de um esforço para melhoria da qualidade de vida nessa década. Hoje já se vive até aos oitenta (que é a esperança média da nossa geração) com razoável qualidade. Amanhã, viver-se-á com qualidade até aos noventa e assim sucessivamente. Finalmente porque desde há muito que se fala que, com a progressiva automação do trabalho ou a substituição do homem pela máquina, a solução vai ser o crescimento do emprego recreativo e social: deixarmos aos robots a produção e passarmos nós a cuidar das nossas crianças e dos nossos velhos. Se assim for, a «dependência» não será problema. É verdade que, neste momento, o panorama é de relativo abandono de uns e outros. Mas a mudança dos sistemas produtivo e laboral também ainda não se fez. Espero, no entanto, que seja essa a tendência.

Lina Arroja (GJ) disse...

Não vi, Luísa. O aumento da esperança de vida vai na verdade aumentar o número de pessoas dependentes de outras. A medicina segundo sei, e de acordo com uma entrevista recente do Prof. Sobrinho Simões, a partir de uma determinada idade os medicamentos apenas poderão diminuir a dôr. Nesse caso, podemos ter uma sociedade composta por pessoas que não são produtivas, que têm uma vida limitada e que quererão morrer. Nesse momento, será o próprio que decide que não vale a pena e sabemos que a vontade de estar vivo é determinante em casos de doenças terminais, por exemplo. Portanto imagino que o AB trouxe esta visão de sociedade improdutiva e queixosa, sem assistência social por falência do estado providência e sem familiares para terem tempo de tomarem conta deles, uma vez que também serão menos (taxas de natalidade a diminuir) por um lado, e terão também reformas mais tardias.
Do ponto de vista económico, a utilização de recursos que passarão a ser escassos, medicamentos que com o tempo deixam de ser utilizados por pessoas mais novas, gastando-se a eficácia dos tratamentos com pessoas que nunca deles vão beneficiar é outro aspecto a considerar.
Do ponto de vista social, as pessoas mais velhas são determinantes para o bem estar das famílias e poderão ser muito úteis junto de sectores que irão surgir, esta nova perspectiva.
Acredito que tudo é uma relação de equilibrios e que será o proprio Homem a reequilibrar a ciência para sua própria sobrevivência.

ana v. disse...

Concordo consigo, Luísa. E não concordo com o António Barreto, também acho que pela primeira vez. O aumento da esperança de vida é inevitável, e acredito que a melhoria da qualidade dessa vida vá ganhando terreno também. Porque não? As sociedades vão-se modificando, os modelos evoluem e transformam-se e não vale a pena resistirmos às mudanças. Pelo contrário, o melhor que temos a fazer é adaptarmo-nos e tirarmos partido delas.

Mike disse...

Não vi a entrevista mas não tenho nenhuma razão para duvidar da exposição, como sempre cristalina e assertiva da Luísa. Sendo assim, e analisando apenas os factos e argumentos que a leitura do comentário da Luísa permitem, devo dizer, mesmo correndo o risco de as decepcionar, que concordo com o António Barreto. Porventura será visto como cruel, mas tenho que ser honesto, não acham? Paradoxalmente li o post da GJ com um sorriso que, creio eu, só a ternura dos 90 ou 100 anos poderiam desencadear. :)

Anónimo disse...

É bonito que as pessoas cheguem a essa idade cheias de força de viver. Manoel Oliveira é um exemplo de longevidade que vale a pena preservar e este seu post é importante por revelar essa faceta.
Quanto ao comentário da Luísa, tenho uma posiçaõ dúbia e vou contar dois casos familiares.
A minha mãe tem 94 anos e ate´aos 92 manteve sempre uma lucidez e capacidade de trabalho notáveis. De há dois anos para cá começou a ter problemas de memória e todos os dias me diz: "Viver demais é castigo". Sabe que já não pode fazer as coisas que fazia e isso inibe-a e tira-lhe a vontade de viver. Por muito que a tente convencer do contrário, ela não se ilude.
Esta frase leva-me a outro caso. de uma tia que teve um AVC aos 80 e viveu 10 anos como um vegetal, até morrer.
Sinceramente, não sei se vale a pena viver assim e duvido que prolongar a vida só como presença física seja um progresso.
Concordo com os alertas de AB.
Viver numa sociedade onde uma grande parte dos velhos esteja depedente de terceiros não me parece que seja uma sociedade saudável.
Quando li o "Ensaio sobre a Cegueira" discutia com amigos outra forma de ler o livro de Saramago. Para mim. ele também podia ser lido como uma metáfora sobre a velhice. Sobre as pessoas dependentes que apenas têm uma existência física e nada mais.
Pessoalmente, não queria acabar dependente de ninguém. Só me interessa continuar por cá enquanto sentir que vale a pena viver. Não quero ser estorvo para ninguém, nem me interessa viver como uma coisa ou um vegetal.
desculpe a extensão do comentário, GJ

Lina Arroja (GJ) disse...

A história que contei relata uma situação excepcional. São pessoas completamente autónomas para ir ao supermercado sózinhas, manusear dinheiro com exactidão e ainda se sentirem mais jovens que a "rapariga" de 60 ou 70 anos. Quando assim é, todos admiramos e sorrimos sensibilizados.
A maior parte das vezes não é assim. A experiência que eu tenho é um pouco igual à do Carlos, a maioria já não sabe como ocupar os seus dias a partir duma certa idade. Sabemos também que quanto maior é a inteligência e o conhecimento do ser humano maior é a probabilidade de viver mais anos, sabemos que o intelecto necessita de ser estimulado, mas a idade diminui a capacidade de concentração, de visão, de resistência e mesmo que se melhore a qualidade de vida, a morte será a única forma de vida. E nada pior que ir morrendo aos bocadinhos.
Também pensamos assim porque temos o elemento dôr com o qual não sabemos conviver, se porventura os farmácos a conseguirem controlar, não sei qual será o nosso comportamento. Daqui a uns anos praticamente todas as doenças estarão diagnosticadas e controladas mas continuaremos idosos. Até quando quereremos viver? No extremo não chegaremos a morrer e esse será o nosso pior castigo. E pergunta Saramago nas suas "Intermitências da Morte", queremos que ninguém morra?

Luísa A. disse...

GJ, segundo ouvi comentar um dia não sei a quem, o nosso corpo foi programado para viver cerca de quarenta anos sem problemas. Depois dos quarenta, «começamos a morrer», de um certo ponto de vista, e cada ano que lhes acrescentamos é uma conquista. Mas, de conquista em conquista, já dobrámos a conta. Com problemas, sim – dorzita aqui, dorzita acolá – mas com capacidade e qualidade. Só assim faz sentido prolongar a vida. A própria noção de velhice é cada vez mais relativa. Em especial nas mulheres. No tempo dos meus avós, uma mulher de quarenta era uma velha. Hoje, uma mulher de setenta é ainda uma «jovem» - veja-se a Jane Fonda, de que ainda há dias aqui falávamos. É esse o limite da ciência: esticar a corda até onde os órgãos possam manter-se a funcionar em pleno, ainda que com pequenas avarias insignificantes. Só até aí. Quanto ao resto, a graça está em que, dentro de cada geração, nos vamos acompanhando uns aos outros, o que faz de nós, entre nós, eternos «rapazes» e «raparigas». Certo?

Lina Arroja (GJ) disse...

Sim, Luísa, as "crianças" dentro de nós muitas vezes só são vistas pelos próprios.:)