30/07/10

Radioterapia

Quando chegamos à radioterapia fazemos parte dos sem rosto, a nossa identidade vai levar tempo a ser reposta. Caras iguais, cabeças desnudadas e intimidades à vista. Com o tempo e à medida que as semanas vão passando, os rostos começam a ter alma, o cabelo inicia a sua caminhada, as pestanas e as sobrancelhas fazem-se gente e a rotina da normalidade renasce. O verbo continua, no entanto, no gerúndio e o tempo vai-se fazendo. A calma é uma constante e o mais difícil é reencontrar a nossa identidade. Não serve pegar no que deixamos há nove meses porque, na verdade, temos de recomeçar o ponto. Como no crochet, nota-se que a sequência está laça, precisa de reganhar o ritmo para ficar um trabalho perfeito. Há dias, perguntaram-me porque me protegia, eu tanto, no passado. Porque queria ser perfeita e ambicionava que me vissem desse jeito. Hoje, passado o tempo de contemplação, continuo a querer o mesmo com a diferença do meu tempo ser mais alentejano. Sinto que as minhas angústias são mais passageiras e as minhas lamentações menos graves, vejo-me com igual impaciência para as questões de falta de ética ou de incompetência, tenho a mesma preferência por gelado de framboesa e limão, mas não me irrito se me trazem manga com baunilha.
A radioterapia cansa, queima, entristece o corpo. E mesmo sabendo que estamos a chegar ao fim desta fase da luta, não sentimos que a batalha esteja vencida. Na verdade, continuamos com todas as nossas forças a reequilibrar o que ninguém nos disse como era feito. Mais uma vez reconhecemos que a força só pode ser nossa se ela estiver cá desde o inicio. Ficamos diferentes talvez, e essa diferença ainda não a temos, ela virá decerto com o tempo e à medida que recuperarmos a nossa identidade.
Amanhã, farei a 35ª e última sessão de tratamentos de radioterapia. Hoje, tive alta e sinto-me grande no porte e na felicidade de me encontrar a caminho da próxima escalada, mesmo que ainda não saiba o destino final. Ao longo destes meses, tentei racionalizar a doença para a ultrapassar e vencer. Dei comigo a reflectir sobre assuntos ou vertentes pessoais às quais não tinha atribuído importância anteriormente. Neste tempo de auto-análise tendemos a particularizar sentimentos que só têm significado num contexto de fragilidade e na realidade, não fui eu que passei a ter outra visão de mim e dos outros, mas apenas tempo a mais para os enxergar. Como o dia-a-dia se faz de muitas sequências, demasiado tempo com a mente à solta passa a ser uma eternidade com reflexões mais ou menos tolas em tempo de pressa. Entre altos e baixos, os meses fizeram-se com ligeireza, com saudades de mim, vontade de chegar ao fim e com a convicção que o cancro também se vence.

8 comentários:

Bacouca disse...

GJ
Como consegue descrever com tanta verdade, com tanto sentimento, todas as batalhas que tem atravessado. Sinto ao ler, que apesar de ter baixos, conseguiu relativizar a situação e vivê-la ao seu ritmo e com esperança. O cancro vencesse!
A vontade, a força e o optimismo contam muitissimo.
Eu estou noutro processo, do qual também tenho muito que lutar, optimizar e vivê-lo com naturalidade. Não tem cura, avança mas eu sei que o posso retardar. Foi um "luto" difícil mas julgo que o ultrapassei. Eu e o núcleo duro da família, que no fundo sofrem mais ainda.
O exemplo mais marcante que podemos deixar a quem gostamos é que a força ve-se nos maus momentos!
Um beijo muito grande e optimo fim de semana.

Dreamer disse...

"A cada dia basta a sua própria aflição", disse Cristo. A fortaleza vem com as batalhas de cada dia, que nos tornam mais capazes de vencer. Isto também se aplica à Bacouca. Admiro-vos muitíssimo!

Mike disse...

GJ, estava com vontade de, amanhã, lhe levar um gelado de chocolate e manga... :-)
(Gosto de a ler e fico sempre sem palavras, por isso este sem jeito dá-me para isto, Colega)

A disse...

Estou como o Mike... sem saber como dizer que tem toda a minha admiração...
Dizem os amigos que os meus doces são uma loucura(tenho mão para bolos), principalmente as minhas queijadas de requeijão.
Apetecia-me enviar-lhe "uma pipa delas".
Um grande abraço, GJ.

Mike disse...

Austeriana, guarde uns quantos que a GJ não pode comer todos... ;-)
(uff! é bom saber que mais alguém está como eu) :-D

Lina Arroja (GJ) disse...

Amigos, foi com agrado que recebi as queijadas da Austeriana e o gelado do Mike. A Bacouca e a Dreamer também agradecem.:D
Um grande abraço e um bom domingo!

fugidia disse...

Geladp de limão: delíciaaaaaaaaaaa!
:-)

ana v. disse...

:-D