16/03/18

Os ciclos de um episódio

"O que mais nos assusta é ser silenciosa, dificilmente visualizamos um futuro menos brilhante ou uma pele menos rosada, raramente encontramos definição para o momento em que o espelho nos diz que afinal era verdade, estamos doentes e não há blush que esconda o ar macilento. Mesmo nos dias que antecedem o primeiro ciclo continuamos a não ver ninguém doente. Quem está à nossa volta também não vê e o sonho não quer acreditar. Mas é assim que tudo acontece e o silêncio com que as células circulam é de alta velocidade. Um pesado contrassenso e um medo absurdamente real!
Do primeiro round saí convencida que outras coisas poderão ser piores. Vamos, eu e os que me rodeiam, caminhar para o segundo com a esperança do primeiro e duma espécie de sintomas de gravidez tardia e enjoada. (GJ, 23/01/2010)"

......e uns tempos depois, vieram estas minhas palavras, sem data.

"O texto acima foi escrito uns dias antes de ter iniciado a quimioterapia e um mês depois de ter feito a cirurgia. A tónica estava no medo e na incredibilidade de poder estar doente. Os dias que se passaram desde então, foram meus companheiros de jornada, dado que muitos momentos foram isolados por vontade e necessidade própria. Os sons deixam de ser importantes e o silêncio é o nosso melhor companheiro. No passado raramente falava no plural, hoje, sinto que faço parte de uma comunidade de doentes oncológicos que se reconhecem e sabem que podem contar uns com os outros. Estou certa que um dia, mesmo que reconhecidamente curada, não deixarei de me lembrar dessa corrente humana que um dia por locais iguais passou. A reflexão é um dos elementos com maior peso no conjunto das variáveis, uma segmentação perfeita dos portadores de doenças tecnicamente curáveis e ansiosamente prováveis."(GJ)

.....E hoje, ao rever o que por aqui andei a escrever e num ímpeto de deitar fora, gosto de acrescentar que sim, é verdade, não nos esquecemos das pessoas que estiveram doentes como nós, que conversaram e partilharam as suas fraquezas, daqueles que nos ensinaram a olhar a vida e os outros de forma diferente, a aprender com gente mais nova, com gente que às tantas já cá não está, mas que  um dia ficaram em nós. Foi há oito anos.

15/03/18

Histórias do quotidiano

Ainda não era o tempo dos alternativos e o táxi era lento, continuava devagar pelas ruas que amanheciam rápido. os vidros embaciados reflectiam que tinha estado parado algumas horas e que o dia de trabalho havia começado cedo, por volta das 5 da manhã.
O carro está frio, disse ela. Eu tenho aquecimento, disse ele, vou abrir um bocadinho para lhe dar calor nos pés. O vidro está embaciado porque  não o limpei por dentro. Não conhece o truque? continuou o homem, é fácil. Limpa os vidros por fora com shampoo e passa o pano do lado de dentro. Vai ver que nunca mais tem problemas, não fica turvo, não embacia, pode chover o dia todo! Já o aquecimento interior não é necessário, só um bocadinho para as clientes aquecerem os pés.
A senhora tem pressa? Vai fazer o exame  lá no hospital? temos tempo.
Olhe outra vez a atravessarem na passadeira. Se fosse um particular, quem sabe desses que um dia hão-de vir para cá dar cabo do nosso trabalho, paravam. Como é táxi atravessam. Eu já os conheço, ando nisto há 48 anos, sabe, já tenho 72 anos. Está a ver, conheço-os todos!
Vai fazer o exame? temos tempo.
eles ainda nem abriram, gente dos hospitais. O Costa é que sabia, andei com ele na tropa.Um dia, o meu médico disse-me eh pá, vai ao Costa que ele sabe daquilo. Depois, mostrei-lhe o exame, sabe o que ele disse? Isto é que é um exame bem feito, vê-se tudo. O Costa sabia daquilo, sim senhor!
Olhe já chegamos, prontinho, já posso desligar o aquecimento, tem tempo.
(encontrada nos cantos da memória de uma mala esquecida no tempo)