05/03/24

Kafka cem anos, uma carta

Meu caro e admirado Franz, Faz tempo que não nos correspondemos. A similitude dos nossos dias o deveria. Porém, a inércia não me tem permitido passar dos abismos e sonhos que me rodeiam. Os dias entre o quarto andar do escritório, à secretária, de lápis na mão, analisando números e balancetes monótonos e o quarto no segundo andar da mesma rua são bafientos e tristes. Vejo-me nesta perseguição doentia de vaivém entre a vida para o meu parco sustento na Rua dos Douradores e a arte que só a escrita e os pensamentos me devolvem. “Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu” *. Ao refletir sobre o que escrevi volto a sentir que neste escrever sozinho, de pé, “como sempre tem sido e assim será”**, estou triste e ao amanhecer entediado. Saio e subo os andares que me levam ao escritório e aos “vês” contabilísticos dos grandes livros abertos. Vejo o mergulho do aparo no tinteiro e uso o mata-borrão ao lado, faço o floreado em cursivo inglês, descritivo, preciso, em tempo de disfarce rotineiro, permitindo alguma máscara de devaneio e libertação. Mais tarde, já no meu lar recorro aos heterónimos, sinto que cada pessoa é um Pessoa. Só a literatura nos preenche, apesar do medo e da angústia, da desilusão de algum dia me lerem, de nos lerem. Franz, permita que o inclua neste nós, são encontros de semelhança no nosso percurso diário. Os dias que se assemelham, um na empresa seguradora escrevendo relatórios sobre sinistros, outro no escritório como aprendiz de guarda-livros a correr colunas de lançamentos contabilísticos, os dois escrevendo pela noite fora, sem sono, sem companhia, em obsessão contra o descanso, sem compromisso feminino. Detestando a mediania. Os dois fugindo do espaço íntimo e ao mesmo tempo buscando e questionando sentimentos, observações passadas, relações mal construídas ou inexistentes. O meu amigo, chamando à madrugada “o céu mudo que só ecoa para quem é mudo”, rejeitando em checo a sua origem judaica e escrevendo em alemão uma “Carta ao Pai”, eu poetando em português e questionando Deus e a Pátria em ilusão britânica, sonhando em Lisboa o tempo sul africano. Bem gostaria de ter a sua disciplina, de me deitar ao Tejo em braçadas energéticas que me limpassem a alma deste meu desassossego. Nem o agasalho do Martinho da Arcada me acalma o frio, quanto mais fazer ginástica de janela aberta em tronco nu, que aquecimento no quarto não se usa em Lisboa. Invejo esses seus rígidos princípios, quem dera! Kafka, meu bom amigo, os dois franzinos e atormentados na companhia da arte literária, dos sonhos, dos desesperos, duas almas neuróticas nascidas entre 1883 e 1888 prestes a terminar. A tuberculose e a cirrose virão ter connosco não com muito distanciamento. Entre 1924 e 1935 morreremos os dois. De nós, se dirá talvez alguma coisa que signifique. Os dois escrevemos na solidão, diários inacabados, mais tarde publicados sem nossa autorização, não deixamos descendência ou cônjuge, seremos leitura obrigatória, quiçá em programa de escola e com adjetivos kafkiano e pessoano passaremos a ser. Termino com amizade e admiração P ’lo Bernardo Soares (F. Pessoa)

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