10/12/22

Inutensílios

Abriu a primeira gaveta, olhou os talheres, viu colheres de sopa a partilhar facas e garfos de sobremesa, os de carne juntinhos no tabuleiro, a seguir os de peixe, ordenados virados frente a frente, de lado as colheres de sobremesa, depois as de chá, a seguir as de café. Um pouco atrás os talheres de servir, a concha da sopa, a colher do açúcar. Abriu a gaveta das colheres de pau e das facas de cozinha, vários tamanhos, com e sem serra, cabos verdes e de inox, abre latas, abre garrafas, suportes em madeira, ainda o cutelo, o rolo da massa e outros utensílios de cozinha. Abriu mais uma gaveta e dela saíram pegas, panos de loiça, toalhas de mão, aventais e uma toalha de mesa já antiga que terá sido alva e que hoje fora de tempo se encontra amarelada, com vincos de desuso. Abriu o armário dos copos e viu-os lindos, finos, de pé, de água e uns mais rasteiros próprios para refeições vulgares. Virou-se para os pratos, rasos, de sopa, de sobremesa, heranças de casamento, travessas destinadas a mesas fartas, a convívios de domingo ao almoço, a risos e conversas de família e soltou-se-lhe a lágrima. Todos estes utensílios se haviam transformado em inutensílios e substituídos pelo plástico, pelo papel que jogado fora não dá trabalho, pela correria dos fins de semana dos mais novos sem tempo para convívio ou almoços de família, sem interesse por chás com bolo de laranja e triângulos de queijo e fiambre, ou scones. Tudo utensílios desusados, inúteis, inutensílios. Abriu a porta dos dias futuros e viu que não teria de se preocupar com testamentos, ninguém daria importância a cacos velhos, toalhas de renda ou copos de cristal, talvez levassem o faqueiro por ser de prata, certamente não lhes interessaria as gavetas da cozinha. Decidiu, então, que entregaria ao vizinho da frente, tão velho como ela, o recheio das gavetas, talvez ele lhes desse destino. Vindo o dia seguinte o amigo não atendeu, chamado quem de direito, encontraram-no sentado numa poltrona da mesma idade, com dois utensílios caídos no chão, caneta e um papel onde se podia ler, “Querida vizinha, agora que estamos os dois velhos e sem herdeiros para os nossos inutensílios, que lhe parece doarmos tudo e voarmos para um lugar onde a natureza nos abrigue? No lugar do amigo, estava agora o cadáver do então vizinho, que se havia transformado em natureza distante, deixando inutensílios para juntar e doar a outros velhos.

08/03/22

Mulher

Olha-te no espelho e vê o horizonte dum tempo perto, e nessa jornada breve encontra-te. Sei que com a idade nos confundimos com o papel de parede e que a nossa voz se apaga. À medida que olhas para o fundo do espelho, cada vez mais perto, está aquele tempo. O tempo em que os teus pés corriam na areia e o teu coração molhado de paixão percorria o caminho que te levava até ao outro. E assim se manteve até confundires os teus estados de alma e fugires para os braços de quem te apaziguava a fadiga. Tiveste o que as gentes do teu século entendiam ser o teu lugar. Foste guerreira e apesar de não teres ido à guerra, os teus admiravam-te. Lutaste por causas e entoaste melodias vitoriosas. Apertaste os filhos nos braços e alimentaste-lhes as bocas famintas até tu própria estares seca. Deixaste que te possuíssem o corpo e libertaste-lhes a alma. Chegaste numa noite passada, as tuas possessões não enchem malas porque as trazes dentro de ti. A idade fez de ti a mulher que és, exiges respeito e não queres compaixão, tens orgulho no teu porte. Dizem que és opulenta, mas és apenas grandiosa com mãos que abrangem sem agarrar. Porque tu quiseste ser livre e assim te relacionaste com o outro, com tantos outros. Foi por isso que decidiste entrar na comunidade de todos os tempos e correrias. Passavas um dia e depois outro até que, não querendo dar trabalho a gente menor, saltaste a barreira da porta. Corajosa, pensaste! Não, diria eu que te conheço. Alimentavas esse ritual que te atropelava o caminho inseguro, como da outra vez que fugiste para os braços do que, num repente, te confortava. Mulher, talvez estivesses certa. Agora aí especada, esperas que te recebam e te abram alas de diva, logo tu que sempre foste sensata. Devias ter percebido ao escolheres o papel de parede rosa pálido, florido, para te dar serenidade e má escolha. Deverias ter pensado que mar revolto te daria melhor voz. Ainda vais a tempo, não tens de ser confundida com a parede. Mulher, aproveita a tua lucidez e corre, muda o teu percurso, salta a linha da estrada, apanha o comboio da vida que ainda te sobressalta e ama. Ama o que te apetecer, quem te agradar, quem entusiasmares. Nessa Comunidade o tempo e a correria são feitos de liberdade e pela liberdade. Junta a tua voz a cravos e a rosas e levanta a bandeira de todos nós.Vive a liberdade de seres Mulher!