29/05/20

Sem palavras

A dificuldade é sempre a mesma. Quando nos dão a notícia do amigo com cancro não sabemos o que dizer. Não há palavras que nos preparem para mais do que apenas umas frases de circunstância. Porque uma notícia de cancro é quase sempre a antecipação de que aquela pessoa vai morrer e nós não sabemos lidar com a morte. Tão habituados estamos a viver e a juntar dias em cima uns dos outros que a perspectiva dessa corrente terminar nos deixa à deriva. E nem sempre o cancro significa morte, pode  o paciente ser bem sucedido. O que nos incomoda é ter de fazer de conta que está tudo bem, olharmos o familiar com coragem e junto do paciente encontrarmos palavras enganosas de pura consternação com medo de dar uma má notícia. Ocultamos tantas vezes a verdade e perante a morte somos tão pouco corajosos. 

13/05/20

Cheio de Muito

Por agora o tempo é feito de incertezas mas a vida das cidades humanizou-se. Varandas com gente que apanha sol, toma uma refeição, aproveita o conforto dos lares num tempo ainda estagnado. Outros  utilizam os espaços exteriores para passear o cão. E mesmo as gentes menos afortunadas vêm à janela participar o momento. 
As crianças, até há pouco confinadas no interior das habitações, usufruem da relva dos condomínios  que já foram proibidas de pisar. Trazem bicicletas e bolas, cumprimentam-se os vizinhos, olham-se e conversam distanciados pelas máscaras mas próximos nas palavras e nos gestos. As estatísticas, face ao período homólogo do ano anterior, revelam menos acidentes com crianças entre os dois e os cinco anos de idade, provavelmente por menos circulação automóvel e mais vigia parental, justificamos apaziguando o confinamento.
Não se ouve os motores dos aviões, o ar  respira-se melhor. O namoro com os pássaros inicia-se com o amanhecer ao som dos pardais, voamos nas tardes brandas com os bandos de andorinhas e ouvimos o grito das gaivotas que nos dizem estar a anoitecer.
Vejo as luzes e as janelas iluminadas que espelham famílias à volta duma mesa ou  reclinadas em sofás enquanto os plasmas televisivos piscam e mudam de cor. A música e os diálogos baixos lembram tempos que a minha miopia não identifica próxima mas  pertencente a horas sós,  os cães não ladram.
Pergunto-me se o mundo tranquilo que se me apresenta é verdadeiro. E se primeiro me inquietei com o efeito fantasmagórico da quietude das ruas, do silêncio dos espaços, a pouco e pouco fui percebendo a procura do outro e quanto podemos ser solidários, bondosos até, e que o mundo é bem melhor do que imaginávamos. Afinal não somos muito diferentes uns dos outros e na adversidade encontramos palavras, graças e desesperos iguais.
Abro os braços e encontro gente que sempre ali esteve, belezas que tinha deixado  inobservadas, caminhos que declinei por convenção e vejo que me retiram a dor. E mais uma vez pergunto-me se temos de fingir sofrimentos alheios ou  viver em conformidade com o momento que não tem tempo, apenas é! Sofremos e amamos por igual, somos condescendentes e frenéticos, gritamos, choramos e sorrimos em vários idiomas com o mesma intensidade e o mesmo fervor.
Em frente vejo o mar, a areia afaga-me os pés, os tornozelos sentem a espuma das ondas e sem qualquer medo ou remorso procuro o meu caminho num tempo que não consigo vislumbrar pasmado, porque o vejo cheio de gente, cheio de sentimentos, cheio de medos, cheio de incertezas, cheio de esperança e trabalho à volta  da vacina, com mortes e desespero também, mas acima de tudo cheio de vida. 
Porque te vi passar no caixão e não sei quem és,  apenas duas pessoas te acompanhavam no carro da frente, não levavas coroas de flores nem carpideiras emprestadas, foste vida e assim continuarás para quem te conheceu, porque a alma é a vida que se prolonga no tempo.