21/05/25

“…Que privilégio extraordinário é o de um país que não tem uma identidade … porque as tem todas…” (Mário Vargas Llosa)

No início pensei, chorava a criança sentada no carro de compras. A mãe não tinha dinheiro, dizia, verdade ou mentira talvez para não a alimentar a doces e chocolates. Era bonita, cara pequena e olhos brilhantes, pestanuda. Os pobres conseguem sempre ter filhos bonitos, tal como os ricos. Os pobres são morenos, os ricos louros. Os remediados de antigamente são a classe média de hoje. Apresentam-se sem grande identidade, vieram das zonas rurais, instalaram-se nas cidades principais. Cidades com essa designação porque têm empregos, casas mais altas, cinemas maiores, centros comerciais, restaurantes temáticos e muita gente. Gente que desliza malas e maletas com pertences, uns de passagem, outros por tudo nessas malas caber. E os que chegam de barco e camiões de onde podem para apanhar morangos, tomates e trabalhar na restauração. Não falam a língua local, falam a deles, vestem o deles, comem o deles, dormem no que se lhes arranja, cheirando a incenso e a caril. Volto ao início, passo pela criança dou-lhe um sorriso, apesar de me doer a cabeça, vergo-me perante quem precisa. O segurança estando de bons modos dá-lhe uma flor, a mãe agradece, continua com sacos e trouxa de cobertores. Continuo com dores diversas, há três dias que não como, só bebo líquidos, sumos, iogurtes e sopa. Tudo por causa da afta instalada na boca após uma mordidela na língua. Continuo a caminhada, cada vez mais devagar. Por desinteresse, por falsa atitude perante a vida a que não pertenço. Devo fazer terapia, talvez. A cidade que não é minha pertence-me diariamente. Percorro os corredores da livraria, pego em Padura, “Ir a Havana”. Interessante, uma recolha de sensações em visita. Volto ao início, vejo a mulher e a criança, compro-lhe um chocolate. Como se estivesse em Havana, vejo melhor, a mulher está grávida. Penso nelas, naquelas mulheres encostadas às paredes da Plaza Vieja e os turistas que tiravam fotografias, esquecidos do rigor e da pobreza. Continuo a viagem, dói-me a cabeça e a afta não permite falar, entendo que leva tempo. Tudo leva tempo. A fome a desaparecer, a inclusão de gente e maletas, de roupas diferentes, de turbantes e carros de compras servindo de transporte, de roupas, de crianças, de comida. Decido ouvir Adriana Varela, tangos e tristezas no amor de Gardel. O mundo latino que ainda se instala no coração dos anos 80. LLorar o que nunca sucedió, diz a letra do rio de la Plata. Volto ao início, esqueço o lamento da criança e a vontade da mãe. Olho as roupas e o vazio das montras, caminho cada vez com menos vontade. Volto a morder a língua, grito de dor, agacho-me contra a parede da praça. Sou eu outra vez, não estou grávida, estou velha, tenho medo de não pertencer a esta cidade onde não há identidade, onde todos podem pertencer se quisermos, se dermos um sentido aos que chegam, aos que são diferentes, aos que riem e choram, aos que são pobres e sonham ser ricos, aos que deixam de ser apenas ricos para virarem acolhedores . Uma voz dirá com aplauso, que privilégio é um país também ser de quem o escolhe, de quem o canta. Cantam gargantas afinadas com versos de elogio e pena, de saudade, de amor, cantam versos de Camões, em fados antigos. Cantam harpas guitarras e acordeões, culturas diversas com cheiros de leste a oeste, deste e daquele mar. Volto ao início dos inícios sem dor de cabeça e sem aftas de língua.