08/06/21

Ambição era o lema, vaidade o mote

Afonso, fechou a porta levando consigo outra cara e novos desejos,
julgou determinação em vez de coragem. Percorreu o tempo dos
tempos e preparava-se, agora, para o julgamento final. Deteve-se
sobre o passado, fincou os cotovelos nos joelhos e sentando-se no
cadeirão que há anos o esperava, equacionou a sua existência. Esta,
ali a seu lado, estava disponível como nunca o havia estado e foi
assim que o caminho começou.
No início, havia sido a descoberta, sem tempo para ser analisada,
sem vontade para sentimentos propícios a esquadrinhamento, em
gostos ou outros, a vida surgia sem simpatia ou empatia pouco
importando o que dele se pensasse, quem lhe estava próximo ou que
um dia lhe havia querido bem. Afonso, tinha decidido espezinhar o
passado com o batente e na calçada.
Construiu o império da sabedoria em livros e viagens, fortificou o
isolamento nas palavras escritas por outros e, algumas, por ele
pensadas para outros absorverem. Aparentemente indiferente, foi
levando a crítica e a assombração nos ombros, carregou horas de
desconforto emocional na jaqueta do absurdo. Seguiu com olhos
cerrados, comprou ódios e guerras, chamuscou e isolou ao seu redor.
Agora, à beira dum dia final, encontrava-se naquele pórtico, pernas
dobradas, cabeça inclinada. Buscava redenção, questionava o
caminho, refletia sobre fé e destino, nascimento e origem. Sentia o
sussurro da dúvida: poderia o homem afastar-se do seu nascimento?
Seriamos capazes de edificar longe do caminho arraigado àquele da
nascença e da tradição? Poderia um homem renascer das cinzas
rejeitadas ou ficaria nele um irremediável e escondido hipócrita?
Fazendo o exercício das parcelas, colocou dum lado o Afonso
profissional, do outro o intelectual e ainda o emocional. O primeiro,
brilhante no sucesso do negócio, superou a concorrência. O segundo
embevecido com a sua superioridade, alimentou vaidades na
conquista de adeptos para teorias inviáveis ou improváveis. O
terceiro, empenhou-se em argumentos de loucura assinalável e
conspiração intelectual.
Os três possuíam células que dando início a mutações podiam
transformá-lo num mentiroso, num velhaco, num ardiloso ou num
hipócrita e logo a seguir num interessante ou num paulatino cidadão.
Afonso, cogitava nestes aspectos da sua personalidade, não querendo
que um sobressaísse ao outro. Acreditava que tendo sido um
exemplar amigo de si próprio, também tinha sido um intelectual
honesto, um profissional orgulhoso e um portador de boas emoções.
Achava-se sem emenda ou correção, suportava o alheio e amava-se
mais do que a qualquer um. Aquele corpo vaidoso aguardava o
reconhecimento da sua genialidade. Continuava sem entender o seu
lugar no mundo. Fechou os olhos sem lugar para enaltecimento e
espreitou-se um velhaco enganador.

29/01/21

A brincar com o mistério e à laia de policial

Uns amigos haviam mencionado aquele Hotel num lugar maravilhoso e há muito colocado no plano de viagens a fazer um dia. Partiram  no Porsche e foram fazendo os quilómetros sem pressa. Parando a cada 200km, umas vezes para descansar, beber um refresco, comer uns pistachios, outras para aqui e ali descobrirem  os Hoteis de Charme da região.

Em Espanha, Sevilha foi a cidade escolhida pelo Flamenco, pelas Sevilhanas e pela própria Andaluzia.  Sentaram-se num lugar central para degustar as  tapas que acompanhavam um  Rioja branco, enquanto sentiam o vibrar do Bairro de Santa Cruz. Fizeram o clássico passeio dos amantes em, charrette ao entardecer. Naquela época do ano a temperatura era amena, 28º Celsius, uma benção divina. Subiram Las Setas, aquela out of the box estrutura arquitectónica  sevilhana. Tiraram fotografias ao pôr do sol, ainda lhes sobrando tempo para o passeio  no rio Guadalquivir.

Seguiram viagem atravessando os vinhedos e as planícies francesas, não deixando de visitar os Castelos de Loire. Experimentaram a cuisine française ses vins et sa patisserie, passaram pelas charmosas aldeias da Bretanha. Em Paris visitaram no Louvre a Exposição  Leonardo Da Vinci, e entraram em Itália. Desta vez, queriam chegar a Milão a tempo do concerto de Andrea Bocelli. Ficariam três dias, com os amigos italianos que lhes tinham aconselhado o Hotel Pasolini.

Em apoteose entrou o Porsche e seus ocupantes na verdejante propriedade. O edifício deixava adivinhar o interior e a perspectiva da paisagem sobre o lago não os deixaria serenar. O quarto virado ao lago era majestoso, próprio para qualquer membro da realeza ou de viajantes requintados. Decidiram jantar nessa noite  no Hotel e apreciar todo o esplendor do interior, que iluminado por uma luz ténue, mantinha a ilusão de séculos passados.

Finda a refeição recolheram ao quarto. No dia seguinte, o pequeno almoço seria  tomado  na varanda apreciando a beleza das águas do Lago Como. O luar iluminava o quarto, da varanda  escutavam-se os sopros e as nuances da corrente.  Olharam-se  não necessitando de palavras.

O grito chegou com o estalido abafado dum revólver, um, dois, três tiros foram disparados. Os quartos tinham sido insonorizados no ano anterior para salvaguardar o repouso dos hóspedes.

O Hotel Pasolini tem apenas três pisos e uma trintena de quartos no total,   todos têm varanda. O camareiro tocou à porta do quarto 13 do andar superior, trazia um carrinho de chá com o pequeno almoço completo para duas pessoas. Do interior chegou um sumido “entre”. No quarto, virado de pernas para o ar, havia um vulto que lhe pareceu ser de uma mulher.

A figura não era parte do casal, esse pormenor ele não sabia e já tinha levado o pequeno almoço a muitos quartos de hotel ao longo dos anos. Contudo, algo lhe pareceu suspeito naquela desarrumação. Deixando o carrinho de chá, fechou a porta e   comentou com os colegas da recepção que algo de estranho se deveria ter passado no andar de cima. Os outros encolheram os ombros e recomendaram-lhe que não se metesse na vida dos hóspedes, mas que ainda assim iriam verificar a saída do 13, o que, na realidade, nunca aconteceu.

No hotel instalou-se a dúvida perante aquele sinal de Don’t Disturb na porta e com determinação entraram no quarto. O director ficou perturbado com o que viu, parecia um assalto, as roupas rasgadas e espalhadas pelo soalho e a cama sem alguém lá se ter deitado.  Claro que, também, não viu o vulto de mulher que abrira a porta ao camareiro, nem o carrinho de chá e muito menos haveria de ver o Porsche no exterior da propriedade. Continuando as buscas, o carrinho de chá foi encontrado no jardim sem pequeno almoço, a mulher misteriosa concluíram que poderia ter sido uma ilusão do camareiro que a julgou ver e ouvir.

Do casal ou do Porsche  ninguém mais ouviu falar ficando a investigação em aberto até hoje. Na região ficou a dúvida se teria sido assassinato sem  prova ou fuga. Há também aqueles que dizem que os hóspedes não tinham cartão de crédito para a avultada despesa a pagar.

Alguns acreditam que foram levados pelas águas do Lago Como nalgum canto de sereia, enquanto outros garantem que estão numa ilha de actores americanos encenando o seu desaparecimento com identidade falsa e desconhecida.