Ouço o chilrear, pergunto-me se a alegria tem som ou é o grupo que lhe dá vida.
Gesticular palavras era o que se fazia, todos os fins de tarde no café Embaixador. À Sampaio Bruno iam chegando, um a um. Depois, eram os cafés, as meias de leite, as torradas com manteiga a escorrer. Uma cerveja e tremoços para os mais velhos, talvez. Olhos que não pediam, no estabelecimento conheciam os hábitos, eram muitos anos de conversas e risos abafados.
O arquitecto havia desenhado duas áreas. A entrada normal com balcão e mesas, depois um pequeno varandim que permitia observar uma zona desnivelada. Os pequenos degraus levavam a essa galeria onde sentado, o grupo formava um corredor de mesas e cadeiras. Eram tipógrafos ansiosos por partilhar o seu dia. Teriam anedotas, pequenas histórias, segredos de Estado ou fofoquices de profissão, não sei. Eram, homem-mulher, pássaro, arrulhando e gesticulando animadamente. Não falavam com palavras e eram ruidosos. Pertenciam, igualmente, aos que gritando com os olhos e com os gestos nos alugam a voz e a espada, porque eram surdos mudos.
Por outro lado, no café Bissau em Cedofeita o agigantar de mesas era ocupado por grupos de estudantes. Sem gestos deixavam que o som das suas vozes animasse as tardes. Um café, um copo de água e um boa tarde no final. A despesa era só conversa, o estudo uma miragem, às vezes. As frequências, os exames, as apresentações ofuscavam sabedoria de tempos a tempos. Reunidos segundo áreas de estudo, economia, letras, engenharia, farmácia, chilreavam canções de intervenção e corridas rápidas à frente de quem queria manter a ordem. Voltando no dia seguinte à mesma hora, um café, um copo de água, conforme o mês um bolo de arroz ou um queque antes do boa tarde.
Penso longe, deixo-me divagar, o tempo devolve-me outros espaços, viagens passadas, sol, esplanadas, gentes. Vejo a Grécia e os cafés de Atenas, tomo um café turco, saboreio a arte do barista e a escolha do apropriado recipiente. Tomo lugar durante um bom par de horas numa esplanada, sugo o afortunado brilho dos que estão à minha volta. A alegria barulhenta, o convívio e a degustação de chávenas de café, sempre acompanhadas com um copo de água gelada e o festim duma apetitosa delícia turca ou grega. As mesas com birkis de cobre e bebida fumegante, batida cinquenta vezes no sentido do relógio, sorvida devagar no sentido contrário dos ponteiros, como se o tempo se fizesse em redor do passado e os grupos fossem um só.
Ouço o silvo dos navios que chegam ao Pireu e o voo da mente continua. Deslumbro-me por ruínas e museus, alimento-me de História.Transporto-me por paixão ateniense para o passado e mantenho-me na actualidadde filosófica presente. Faço uma paragem, regresso ao presente, para logo voltar à navegação da memória. Chego a Santorini. A beleza da ilha, os navios de grande viagem desembarcando nacionalidades diversas, interesses comuns. Grupos de gentes em busca de monumentos e curiosidades, quiçá esquecidas pela maioria na viagem seguinte. E no deck, ondas e piscinas de contentamento, risos de senhoras em bikini, barrigas e corpos de meia idade, homens calvos e ventres que nem tambores, alinhados ao sol. Ruidosos, com gargalhadas exuberantes e gosto por reforma. Americanos e russos convivendo, ucranianos e bielorrussos partilhando salsichas e vodka ao pequeno almoço. À noite usando notas de casino e dançando polkas, sem julgamento ou remorso. Vivendo os dias alegremente, sem culpas ou restricções. No final, outra viagem, outro riso, outra alegria, ouvindo guizos e típicos burros a descer e a subir escarpas, carregando turistas desejosos de fotografias. Com ou sem som, com ou sem chilreado, apenas homogeneidade, como pássaros voando, gritando em grupo.
Eu, devolvo as memórias ao seu espaço, regresso. Passeio-me pelos grupos, ouço o chilrear da vida. Estou no café Embaixador, estou no café Bissau, estou em casa!