Naquele dia, algo se estava a passar no Planeamento Regional. Armando dormia um regalado sono em casa de sua mãe. No gabinete o Director encolhia os ombros, baixava os olhos e continuava a ler. Ninguém sabia o que ele lia, o Director usava os permitidos monossílabos quando lhe perguntavam por Armando.
O gabinete era um open space que acolhia dez mesas dispostas em duas filas paralelas, no planeamento olhavam-se frente a frente. Quem nelas se sentava manifestava um interessante observar. Ninguém falava, porque todos tinham nascido com voz mas sem direito a palavras ao acaso. O Dr. Águas era quem mais olhava de lado, não tinha computador, apenas papel, lápis e uma máquina de calcular. Calculava ele, que com o tempo talvez encontrasse números que justificassem o desemprego, as baixas de ocupação, o absentismo. Com menos recursos e palavras escassas para justificar percentagens e desvios, sentia-se ainda mais isolado.
Em cima das mesas cada funcionário tinha uma lista de palavras a utilizar, os teclados apenas permitiam a utilização das letras necessários para conjugar os verbos, os substantivos, os adjetivos e os complementos da linguagem permitida pelo Delegado. Homens e mulheres não manifestavam os seus pensamentos, sob pena de parecerem tolos à procura de novo emprego. A manhã ia longa, os relatórios seguiam caminho para o gabinete do Delegado.
E Armando dormia um regalado sono em casa de sua mãe. A noite tinha sido de grande e inquieta descoberta. Os computadores tinham memória e armazenamento de palavras desconhecidas.
Havia músicas e filmes de linguagem desconhecida e que noutra vida podiam ter sido usados. Pertenciam àquela época em que o alfabeto não tinha restricções, todas as letras se conjugavam livremente, todos os cidadãos circulavam sem correntes ou olhares ameaçadores. Ninguém se preocupando com listas de palavras para entregar ao Director que as entregava ao Delegado, que as fazia seguir para o Secretário de Estado, que as comunicava ao Assessor do Ministro da tutela. E que por sua vez, organizava relatórios em discursos convincentes e convenientes, com palavras de uma lista dourada onde a conjugação era regada de adjetivos brilhantes e confiantes.
O Director tinha um acordo solidário com Armando, sabia onde o encontrar e com as palavras breves de - veja se chega, todos o procuram - obrigou o desejado técnico a sair daquele regalado embalo. No gabinete do Delegado a aflição crescia, onde estava o Armando? E se aqueles teclados dessem em verborreia sabe-se lá de que género?
Armando chegou, mas não dominou a fuga de palavras, descontroladas fluíram, seguiram caminho, ultrapassaram domínios e chegaram em voz aberta e audível aos televisores. Em casa, a população foi surpreendida com música e intervenção desajustada ao habitual, o tempo das palavras escassas tinha acabado.
E tudo, porque Armando ao dormir um sono regalado em casa de sua mãe, deixou a porta aberta para a informação livre. Nesse dia, foi levado em braços pelos colegas, que o passaram a ver como o libertador da voz. Passados anos, o esquecimento voltou e novas listas de palavras foram enviadas à Assembleia de Representantes. Armando é agora o Ministro da tutela, a quem o novo Delegado envia relatórios de meias e escassas palavras, repetindo procedimentos dourados em palavras controladas. No gabinete de planeamento os teclados são controlados pelo Dr. Águas que nos dias ímpares os desliga e disponibiliza papel, lápis e máquina de calcular.
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