19/05/10

Lidar com o cancro I

Para se lidar com o cancro é necessário estar de boa saúde em primeiro lugar. No momento da notícia a pessoa, porque não se vê ou sente doente, ouve e antecipa o que lhe comunicam de uma forma distanciada. Na primeira fase interioriza num corpo saudável e fora do seu corpo doente, e por isso não participa. A análise é colhida por aquilo que os técnicos de saúde lhe vão dizendo e orientando. O susto pode não ter lugar e a pessoa distanciada do seu corpo doente utiliza o seu conhecimento remoto daquilo que será o seu dia-a-dia e a sua realidade daí a uns tempos, mas face a um corpo são.
No segundo momento, que no meu caso, foi no pós-operatório, a consciência apropria-se da realidade e a preparação para o passo seguinte torna-se um elemento vivido e antecipado. O tempo que vai de um momento ao outro, o de saber que tem a doença a sentir-se doente, depende do programa e do protocolo proposto. Para um doente com cancro tudo é proposto, porque na verdade, nada é certo. O doente tem toda a liberdade para aceitar ou não o tratamento sugerido, e deve-o fazer com total capacidade de decisão sendo esta livre e responsável para o doente, e igualmente séria para quem nos propôs o protocolo. O momento da decisão é muitas vezes ameaçado ou posto em causa pelos familiares ou pessoas próximas porque ao estarem de fora, pensam que têm uma melhor perspectiva do assunto. Não deixa de ser interessante verificar que se na primeira fase da análise o doente não participa, decide fora do seu corpo, e apenas por automatismo, nesta é exactamente ao contrário. É pelo facto de sentir que a decisão é sua, e que ao acreditar que esse é o caminho para a cura, não questiona o que lhe propõem. A pessoa assume a sua condição de fragilidade face ao tratamento e à necessidade de ajuda médica. O parente está neste momento fora da doença, e a sua melhor ajuda é a aceitação da decisão de quem está a lutar pela sobrevivência. É nesta altura que surgem hipóteses e sugestões de ouvir outras opiniões, ideias de consultas noutros países e é também nesta fase que a dúvida se instala em quem está por perto. Para o doente é o momento de focalizar e concentrar na proposta e no programa de cura. É o momento de mais uma vez acreditar, confiar e ter esperança. É este o momento para mais uma vez ser capaz de ditar a sua consciência e ser assertivo se não mesmo autoritário. O doente informado sabe que o protocolo da terapia é igual em todo o lado, daí ser um protocolo, existindo vários consoante o diagnóstico, o tipo de cancro e o estadiamento da doença. Assim, e porque estamos a lidar com probabilidades, outras coisas sendo iguais não há qualquer vantagem em retirar o doente do seu habitat natural, para em benefício de uma expectativa o colocar num meio diferente e mais constrangedor. O elemento familiar composto pela sua casa, família, amigos, local de trabalho e outros constituem uma das parcelas acolhedoras e de bem-estar para a recuperação.

7 comentários:

Bacouca disse...

GJ
A frontalidade com que expõe a sua experiência dá-me a sensação que faz parte daquele grupo de lutadoras-resistentes, (onde tambem me incluo) que enfrentam a situação com realidade mas nunca perdendo a esperança. Bem haja GJ! Os meus médicos já me falaram várias vezes em escrever o meu caso. Faço num cantinho meu mas na verdade,julgo que expo-lo poderá ajudar outras pessoas a lidar melhor com o que lhes é confrontado.
Um sentido beijo.

fugidia disse...

Li, gostei muito e creio que a mensagem está no último parágrafo.
Com uma ligeira alteração minha, fruto da minha experiência pessoal. Eu acho que o elemento familiar não é «uma das parcelas acolhedoras e de bem-estar para a recuperação»: é A parcela.
Um beijinho :-)

Dreamer disse...

Gostei muito de ler este post, pela coragem de se expor e por contribuir para esclarecer outras pessoas. Espero que melhore depressa e definitivamente.
Um abraço muito sentido.

Lina Arroja (GJ) disse...

Bacouca,quando fiquei doente pensei em criar um outro blog onde fosse espelhando o meu dia a dia. Não queria infectar o espírito deste. Cheguei, depois à seguinte conclusão: não nos apetece escrever todos os dias, há coisas que nunca as queremos partilhar e é neste espaço que estão os meus amigos. Por outro lado, a doença faz parte de nós e a nossa experiência pode ajudar outros com doenças idênticas ou piores.
Beijo

Lina Arroja (GJ) disse...

Fugi,
Estou de acordo que a família mais próxima é a parcela fundamental, mas existem outras "famílias" que são muitas vezes a cereja em cima do bolo...de chocolate ;D
Beijo

Lina Arroja (GJ) disse...

Dreamer,
Há experiências que a determinada altura nos parecem ser de interesse para outras pessoas. A maior parte de nós não gosta de partilhar sentimentos e eles fazem parte do nosso dia-a-dia.
Os estudos dizem que as mulheres são mais do coração do que da razão. Eu gosto de pensar que temos uma boa dose das duas componentes e por isso temos atributos desconhecidos...:)))
Abraço.

fugidia disse...

GJ,
para mim, a cereja em cima do bolo de... hã... chocolate (ou será o bolo de chocolate em cima da... pois...) faz parte DA parcela/família de que eu falava (risos)
;-D