25/04/09

Onde é que eu estava no 25 de Abril

in República, n. 15446 / 2ª série, p. 5
O ritual repetia-se todas as noites. Esperava que todos estivessem a dormir e ficava a ler e a ouvir música. Tinha um pequeno transístor que me acompanhava para todo o lado. Naquela noite havia matéria para estudar e no rádio tocava mais uma vez a música que nos últimos tempos se fazia ouvir com alguma insistência. Lembro-me de ter pensado que era tarde para continuar a ouvir música. "Grândola Vila Morena" ficaria para a história e seria ouvida como hino daí em diante.
Quando o dia amanheceu ninguém sabia se o que estava a acontecer era a favor ou contra o Governo. Na Assembleia Nacional já havia vozes de discórdia, Miller Guerra era o meu preferido. O livro de Spínola "Portugal e o Futuro" tinha sido publicado e circulava uma versão em francês do "Portugal Amordaçado" de Mário Soares. Há muito que os estudantes liam "O Jornal do Fundão", o "República", viam "O Couraçado Potemkin" e encomendavam a um distribuidor diligente uma edição francesa do "Capital" de Karl Marx.
Mário Murteira e Pereira de Moura eram meus professores. Ninguém tinha, no entanto, noção do que se estava a passar mas lembro-me que as pessoas estavam silenciosas à espera dos jornais e também contentes sem saber porquê. A euforia deu-se mais pela tarde quando se percebeu que o regime tinha caído. Os dias a seguir foram de balbúrdia, confusão, trapalhadas, caça aos pides, cenas completamente disparatadas em que bastava um "agarra que é pide" para a população despir a pessoa em plena rua. Estas e outras cenas que os jovens como eu achavam completamente divertidas viviam-se várias vezes ao dia.
A chegada de Mário Soares e de Álvaro Cunhal ao Aeroporto da Portela ficaram no nosso subconsciente e a participação no 1º de Maio uma manifestação que nunca mais poderemos esquecer. A excitação que se vivia faz parte do nosso subconsciente colectivo e, é por isso que este ano a urgência de mudança é ainda maior.
Onde é que eu estava no 25 de Abril? Em Lisboa!

9 comentários:

Mike disse...

Eu estava em Angola, na cidade onde vivia (Lobito). Soube que algo de estranho se passava porque estava a ter explicações (de tarde) e o explicador nos mandou para casa. Mais tarde soube que o meu pai tomara conhecimento do 25 de Abril logo de manhã cedo pela BBC (rádio), mas não tinha dito nada, não fosse tratar-se de uma intentona sem resultados práticos. Só ele e a minha mãe sabiam. Percebi-o. 3 anos antes tínhamos vindo de férias à Metrópole para fugirmos de alguma pressão que a PIDE estava a exercer no meu velhote. Era aí que eu estava no 25 de Abril. :)

Lina Arroja (GJ) disse...

Lugares diferentes e experiências quase iguais apesar da distância entre Continentes. Um país que julgava possivel ter grande Metrópole com territórios espalhados pelo mundo. Esse foi o erro de Salazar pensar que era possivel deixar de ter Colónias e ter apenas um grande Portugal. O polvo tinha muitos braços que não lhe pertenciam e que não se controlava à distância. E esta é uma das razões porque não nos sentimos completamente europeus. Portugal (Metrópole)sim, mas o tal Portugal unificado sempre viveu de costas para a Europa e com os olhos virados para os seus territórios além-mar.
É isso, Mike que faz também de nós um povo multicultural que não sabe tirar partido dessa riqueza, da Lusofonia, termo que muitos consideram que nem existe.É isto que devia ser o nosso ADN.:)

Mike disse...

Como sempre assertiva e lúcida, GJ. Devia ser o nosso ADN, sim. :)

Luísa A. disse...

Também estava em Lisboa, GJ. E também me lembro, vagamente, de seis dias intensos. Mas não guardo, nem muitas recordações, nem muito nítidas, porque sempre tive uma aversão visceral ao descontrolo e ao excesso, e tendo sido o que mais se viu, «branqueei» essa quadra na memória. :-)

Lina Arroja (GJ) disse...

Luísa, eu tinha acabado de entrar na faculdade era dificil esquecer:))

Ricardo António Alves disse...

Não havia melhor sítio para se estar, GJ.

Lina Arroja (GJ) disse...

Sem dúvida, RAA. Lisboa era acção e excitação.

ana v. disse...

Belas recordações, GJ. Invejo o seu grau de politização nessa época, o meu era pouco mais do que autismo. Mas aprendi tudo em sucessivos cursos intensivos nos anos que se seguiram...

Lina Arroja (GJ) disse...

São recordações em jeito de redacção. Umas melhores do que outras, mas tenho um hiato de alguns anos fora de país que podem romantizar o que por aqui de pior se viveu.