Monteiro Enes era uma pessoa estranha, de tal forma estranha que a primeira vez que o vi imaginei que tivesse mais para o lado da loucura de lá do que da loucura de cá. Falava sempre por analogias e sofismas. Era um engenheiro brilhante daqueles que se licenciou com média de 19, com sete filhos fruto de dois casamentos e uma mente de filosofo. Conheci-o numa fase já avançada da vida e assim à vista ninguém dava nada por ele. Já não tinha idade para se preocupar com a roupagem ou as delicadezas de fanfarra. Chegava a ser mesmo diabólica aquela forma de trazer uma "bola de queijo limiano" para a mesa e esperar que os convivas a cortassem à dentada... Não lhe interessavam os aspectos mais rebuscados da boa linhagem nortenha. Comia sempre no mesmo restaurante perto da escritório, vivia numa casa forrada de livros que precisava de obras há anos e tinha uma família igual a ele. Do segundo casamento saíram três filhos que ele educava de forma tradicional e o mais desarrumada possível. A mulher tinha as características que se esperariam para uma pessoa fora do comum, ela também era diferente.
Quando Monteiro Enes conversava era bom que estivéssemos atentos, caso contrário perdíamos o fio à meada. No meio das suas conversas elaboradas, lentas, pausadas e articuladas com a cinza do cigarro que lhe caia nas camisolas coçadas ou casacos com lustro, este homem mantinha o interlocutor embasbacado durante horas. E depois tinha uma característica que só encontramos nos portugueses. É que ele não deixava de bater à porta sempre que passava por casa de um amigo e não era preciso cerimónias para receber quem não precisava de finuras mas apenas de alguém que ouvisse e apreciasse as suas palavras tolas à primeira vista mas com muita sabedoria quando analisadas com rigor.
Quando este amigo morreu, a discussão não ficou vazia porque ainda hoje nos serve de tema e de reflexão. Imagino que outros como eu se lembrarão dele. Pelo menos quero acreditar que sim.
7 comentários:
Grande Jóia, já lhe aconteceu ler um texto atentamente, relê-lo, querer comentá-lo, ter uma noção do que escrever no comentário mas as palavras e as ideias surgirem e desaperecerem a uma velocidade vertiginosa que nos leva a pensar que fomos, de súbito, tomados pelo lado da loucura de lá como Monteiro Enes? Nirvana, Fernando Pessoa e a Igreja Católica... raios! Porquê? Como? O que os une?... raios, estou perdido... mas pelo menos já comentei, mesmo achando que não faz sentido nenhum. :-))))
Mike, já me ri consigo (no bom sentido. Quem ouvia Monteiro Enes tinha exactamente esse confronto: do que é que este "gajo" fala?:)
Só um louco misturava coisas em nexo. Mas não é exactamente isso que nós Portugueses somos?
Primeiro a nossa herança católica, depois Fernando Pessoa um português expatriado e talvez o único que consegue ter tudo o que nós somos. Talento, resignação, inconformismo, loucura e preguiça, amor e timidez e uma mente séria e desassossegada que tem o tamanho do mundo mas que não consegue deixar o seu cantinho português? Com hábitos rotineiros, com vida que não ama mas que não larga? E os Nirvana não são a contestação dos valores tradicionais, dos principios e do status quo? E não foi isso que Pessoa fez? E os Portugueses não é isso que fazem apenas por fazer e não para conseguir? Mas a alma lusitana não foi já o contrário em tempos de glória?
Mike, conseguiu que eu esgotasse o espaço da caixa de comentários:))))
Todos os pontos que deixei podem ser discutidos e dissecados, e era isto que Monteiro Enes provocava. E no meio de uma explanação ele introduzia um elemento que no ínicio nos parecia absurdo e voltava a deixar o enigma para a próxima vez. Ele era um verdadeiro português, a gostar de baralhar com as palavras e a deixar-nos a pensar:))
E Mike, devo dizer que a sua frase final é de "matar" como se dizia no meu tempo. (Risos bem divertidos e agradáveis)
... ainda mais perdido. E agora sem fôlego... (gargalhada)
Não conheci Monteiro Enes, GJ. Mas esta sua descrição lembrou-me outra figura inesquecível, que também conhecia os portugueses a fundo e também era um paradigma do "ser português": Agostinho da Silva.
Há qualquer coisa de comum entre eles, não há? :-)
Completamente,Ana :)
Gostei da sua comparação.Fazem-nos falta pessoas que nos desafiem a mente.
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