
As pessoas, os cheiros e os sons de um país é o que melhor guardo na memória já que as cores fazem parte do colorido natural dos meus olhos. Calculo que é o que nos faz mais falta quando estamos longe dos lugares de que gostamos. Circular ou andar a pé no mês de Agosto não era fácil. Miúdos e graúdos procuravam esconder-se do sol e os estrangeiros encontrar um local com ar condicionado. A imaginação e a boa fé dos habitantes ensinava e ajudava a encontrar alternativas.
A Catedral de Port-au-Prince era um dos locais mais frequentados entre as 14 e as 16 horas. Era calmo, fresco e privilegiado para o momento da meditação, vulgarmente conhecida por sesta.
Se durante o dia era sol e calor respirado e misturado em recantos onde as galinhas corriam, as crianças brincavam e as mulheres se lavavam em água macilenta, com o cair da noite fogareiros à porta das casas, traziam os cheiros que antecipavam petiscos e temperos que me lembravam carqueja e outras coisas desconhecidas. Bem perto, a música, os risos e a algazarra à volta do alumínio dos pratos fazia-se ouvir. Ao longe e de tempos a tempos, alguns tiros também. Sons perdidos numa cidade que no dia seguinte nada tinha a contar, apenas pequenos desacatos que os jornais relatavam e os dissidentes políticos reclamavam.
A cidade transformava-se com o cair da noite. Os morcegos rondavam as palmeiras e as águas duma piscina que não chegava a arrefecer, os mini lagartos e lagartixas gigantes, os mosquitos e as baratas voadoras faziam parte daquelas noites quentes e húmidas com trovoadas que me assustavam mas que divertiam e animavam os meus novos amigos. A chuva depois da seca é uma autêntica festa crioula. A esse propósito, um dia estava num restaurante quando desatou a chover e um homem entrou correndo e esbracejando. Falava o que eu não entendia, chamava os outros para irem ver qualquer coisa que eu não sabia, e foi nesse momento que me dei conta que era a única pessoa branca naquele local. Por momentos senti receio, e pensei nos que me tinham avisado sobre a tontaria da minha visita ao Haiti, para logo todos nos rirmos porque afinal era a chuva o motivo do estardalhaço!Recordo o dia, em que estando no quarto, vi "uma simples e pobre barata voadora" e telefonei para a recepção dizendo o que me veio à cabeça "J'ai un animal dans ma chambre!" passados uns minutos apareceu um empregado com caçadeira... a partir daí passei a ser motivo de divertimento "la dame qui avait un animal dans sa chambre..." diziam e riam com benevolência.
Não era difícil ser conhecida num hotel que tinha como hóspedes os três professores da Universidade Canadiana e os próprios donos, família de longínqua origem alemã, mas há muito radicada no país, que lá vivia com os seus filhos e que rapidamente me convidou para o seu recanto. Fiquei a saber que borboletas gigantes no cimo da porta tem significado de bom ou mau agoiro, e conheci uma das maiores colecções de pintura que um particular pode possuir em casa. Tive a sorte de me oferecerem uma peça que guardo aqui ao meu lado.

Não havia também dificuldade em arranjar pessoas para tomar conta da minha filha, a dificuldade era saber quem é que o tinha feito, porque todos levantavam o braço quando questionados sobre o trabalho de babysitter. Aprendi também que era escusado perguntar quem é que tinha feito isto ou aquilo, porque a resposta era óbvia. No caso do tomar conta, é claro, que eram todos. E foi aí que deixei a maior parte dos dólares que levava. Mas também foi durante essas alturas, em que à noite, limitada pela minha acompanhante de três meses, passava muito tempo no hotel e conversava com os empregados. E se eles tinham histórias!
Preocupavam-se com as doenças como a cólera que matava um filho, mas que também deixava mais comida para as outras bocas que havia em casa para alimentar. Esta racionalidade não é compreensível para um europeu ou para alguém que viva em abundância. Tal como não é compreensível que para comprar tabaco o táxi nos leve à gare marítima, buzine e do nada apareçam magotes de crianças que nos atiram para dentro do carro pacotes de Marlboro, e que sem percebermos o carro fica cercado e o dinheiro é disputado por mãos que já ninguém sabe de quem são. E enquanto o carro desaparece, aquelas crianças lutam e gritam e o taxista ri e nós choramos por dentro.
E com a noite chegam às portas dos hotéis, mães que acompanham e oferecem filhas, algumas ainda crianças, mas que são a recompensa de mais um pão no dia seguinte. E a naturalidade do acto torna difícil o nosso julgamento reprovador.
Gente, que um dia na sua simplicidade me explicava como comer o seu fruto preferido: "Tu prends le mango, tu cherches le couteaux, tu coupes le mango et tu manges en petits morceaux, comme çá! Tu vois? C'est très simple!"

Não havia também dificuldade em arranjar pessoas para tomar conta da minha filha, a dificuldade era saber quem é que o tinha feito, porque todos levantavam o braço quando questionados sobre o trabalho de babysitter. Aprendi também que era escusado perguntar quem é que tinha feito isto ou aquilo, porque a resposta era óbvia. No caso do tomar conta, é claro, que eram todos. E foi aí que deixei a maior parte dos dólares que levava. Mas também foi durante essas alturas, em que à noite, limitada pela minha acompanhante de três meses, passava muito tempo no hotel e conversava com os empregados. E se eles tinham histórias!
Preocupavam-se com as doenças como a cólera que matava um filho, mas que também deixava mais comida para as outras bocas que havia em casa para alimentar. Esta racionalidade não é compreensível para um europeu ou para alguém que viva em abundância. Tal como não é compreensível que para comprar tabaco o táxi nos leve à gare marítima, buzine e do nada apareçam magotes de crianças que nos atiram para dentro do carro pacotes de Marlboro, e que sem percebermos o carro fica cercado e o dinheiro é disputado por mãos que já ninguém sabe de quem são. E enquanto o carro desaparece, aquelas crianças lutam e gritam e o taxista ri e nós choramos por dentro.
E com a noite chegam às portas dos hotéis, mães que acompanham e oferecem filhas, algumas ainda crianças, mas que são a recompensa de mais um pão no dia seguinte. E a naturalidade do acto torna difícil o nosso julgamento reprovador. E todos têm histórias e experiências de voodoo e conhecem gente que virou zombie. E têm medo! E se à noite a conversa no hotel era uma, durante o dia a conversa à volta da piscina era feita pelos familiares do pessoal diplomático ali estacionado, por um ou outro conhecido dos donos que utilizavam a piscina para lazer e também alimentavam algum favorecimento local. E as conversas que falavam da pobreza alheia, com desdém, também ensinavam os locais de compra geridos por marcas francesas e estrategicamente, localizados junto das casas dos brancos, para não parecer mal. Quem chega de cor branca a um país de pele maioritariamente escura, tem vergonha de mostrar riqueza. Com o tempo imagino que tudo se resolve e o branco e o preto entram apenas na noção de opostos mas iguais, desde que possam comprar nos mesmos sítios e lugares, o que no Haiti não era, nem é o caso.
O Haiti que eu conheci, já vivia abaixo do limiar de pobreza mas ainda não era o lugar de hoje. Era, apesar de tudo um país de gente corajosa, que não pedia esmolas, que tinha orgulho nos seus, que acolhia o visitante o melhor que sabia e que me deixou uma enorme saudade e também o sentimento de impotência perante aqueles que me continuaram a escrever cartas de duas linhas a pedir ajuda e auxílio para saírem dum país sem futuro.
Gente, que um dia na sua simplicidade me explicava como comer o seu fruto preferido: "Tu prends le mango, tu cherches le couteaux, tu coupes le mango et tu manges en petits morceaux, comme çá! Tu vois? C'est très simple!"
2 comentários:
E que corda deu ao relógio, senhora... que post fantástico... atirou comigo para o Haiti sem nunca ter lá estado. :D
É que havia muitos relógios para dar corda.;)
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