14/01/09

Haiti (III)


As pessoas, os cheiros e os sons de um país é o que melhor guardo na memória já que as cores fazem parte do colorido natural dos meus olhos. Calculo que é o que nos faz mais falta quando estamos longe dos lugares de que gostamos. Circular ou andar a pé no mês de Agosto não era fácil. Miúdos e graúdos procuravam esconder-se do sol e os estrangeiros encontrar um local com ar condicionado. A imaginação e a boa fé dos habitantes ensinava e ajudava a encontrar alternativas.
A Catedral de Port-au-Prince era um dos locais mais frequentados entre as 14 e as 16 horas. Era calmo, fresco e privilegiado para o momento da meditação, vulgarmente conhecida por sesta.

Se durante o dia era sol e calor respirado e misturado em recantos onde as galinhas corriam, as crianças brincavam e as mulheres se lavavam em água macilenta, com o cair da noite fogareiros à porta das casas, traziam os cheiros que antecipavam petiscos e temperos que me lembravam carqueja e outras coisas desconhecidas. Bem perto, a música, os risos e a algazarra à volta do alumínio dos pratos fazia-se ouvir. Ao longe e de tempos a tempos, alguns tiros também. Sons perdidos numa cidade que no dia seguinte nada tinha a contar, apenas pequenos desacatos que os jornais relatavam e os dissidentes políticos reclamavam.

A cidade transformava-se com o cair da noite. Os morcegos rondavam as palmeiras e as águas duma piscina que não chegava a arrefecer, os mini lagartos e lagartixas gigantes, os mosquitos e as baratas voadoras faziam parte daquelas noites quentes e húmidas com trovoadas que me assustavam mas que divertiam e animavam os meus novos amigos. A chuva depois da seca é uma autêntica festa crioula. A esse propósito, um dia estava num restaurante quando desatou a chover e um homem entrou correndo e esbracejando. Falava o que eu não entendia, chamava os outros para irem ver qualquer coisa que eu não sabia, e foi nesse momento que me dei conta que era a única pessoa branca naquele local. Por momentos senti receio, e pensei nos que me tinham avisado sobre a tontaria da minha visita ao Haiti, para logo todos nos rirmos porque afinal era a chuva o motivo do estardalhaço!
Recordo o dia, em que estando no quarto, vi "uma simples e pobre barata voadora" e telefonei para a recepção dizendo o que me veio à cabeça "J'ai un animal dans ma chambre!" passados uns minutos apareceu um empregado com caçadeira... a partir daí passei a ser motivo de divertimento "la dame qui avait un animal dans sa chambre..." diziam e riam com benevolência.

Não era difícil ser conhecida num hotel que tinha como hóspedes os três professores da Universidade Canadiana e os próprios donos, família de longínqua origem alemã, mas há muito radicada no país, que lá vivia com os seus filhos e que rapidamente me convidou para o seu recanto. Fiquei a saber que borboletas gigantes no cimo da porta tem significado de bom ou mau agoiro, e conheci uma das maiores colecções de pintura que um particular pode possuir em casa. Tive a sorte de me oferecerem uma peça que guardo aqui ao meu lado.

Não havia também dificuldade em arranjar pessoas para tomar conta da minha filha, a dificuldade era saber quem é que o tinha feito, porque todos levantavam o braço quando questionados sobre o trabalho de babysitter. Aprendi também que era escusado perguntar quem é que tinha feito isto ou aquilo, porque a resposta era óbvia. No caso do tomar conta, é claro, que eram todos. E foi aí que deixei a maior parte dos dólares que levava. Mas também foi durante essas alturas, em que à noite, limitada pela minha acompanhante de três meses, passava muito tempo no hotel e conversava com os empregados. E se eles tinham histórias!

Preocupavam-se com as doenças como a cólera que matava um filho, mas que também deixava mais comida para as outras bocas que havia em casa para alimentar. Esta racionalidade não é compreensível para um europeu ou para alguém que viva em abundância. Tal como não é compreensível que para comprar tabaco o táxi nos leve à gare marítima, buzine e do nada apareçam magotes de crianças que nos atiram para dentro do carro pacotes de Marlboro, e que sem percebermos o carro fica cercado e o dinheiro é disputado por mãos que já ninguém sabe de quem são. E enquanto o carro desaparece, aquelas crianças lutam e gritam e o taxista ri e nós choramos por dentro.

E com a noite chegam às portas dos hotéis, mães que acompanham e oferecem filhas, algumas ainda crianças, mas que são a recompensa de mais um pão no dia seguinte. E a naturalidade do acto torna difícil o nosso julgamento reprovador.
E todos têm histórias e experiências de voodoo e conhecem gente que virou zombie. E têm medo! E se à noite a conversa no hotel era uma, durante o dia a conversa à volta da piscina era feita pelos familiares do pessoal diplomático ali estacionado, por um ou outro conhecido dos donos que utilizavam a piscina para lazer e também alimentavam algum favorecimento local. E as conversas que falavam da pobreza alheia, com desdém, também ensinavam os locais de compra geridos por marcas francesas e estrategicamente, localizados junto das casas dos brancos, para não parecer mal. Quem chega de cor branca a um país de pele maioritariamente escura, tem vergonha de mostrar riqueza. Com o tempo imagino que tudo se resolve e o branco e o preto entram apenas na noção de opostos mas iguais, desde que possam comprar nos mesmos sítios e lugares, o que no Haiti não era, nem é o caso.
O Haiti que eu conheci, já vivia abaixo do limiar de pobreza mas ainda não era o lugar de hoje. Era, apesar de tudo um país de gente corajosa, que não pedia esmolas, que tinha orgulho nos seus, que acolhia o visitante o melhor que sabia e que me deixou uma enorme saudade e também o sentimento de impotência perante aqueles que me continuaram a escrever cartas de duas linhas a pedir ajuda e auxílio para saírem dum país sem futuro.

Gente, que um dia na sua simplicidade me explicava como comer o seu fruto preferido: "Tu prends le mango, tu cherches le couteaux, tu coupes le mango et tu manges en petits morceaux, comme çá! Tu vois? C'est très simple!"

2 comentários:

Mike disse...

E que corda deu ao relógio, senhora... que post fantástico... atirou comigo para o Haiti sem nunca ter lá estado. :D

Lina Arroja (GJ) disse...

É que havia muitos relógios para dar corda.;)