




Recordo o dia, em que estando no quarto, vi "uma simples e pobre barata voadora" e telefonei para a recepção dizendo o que me veio à cabeça "J'ai un animal dans ma chambre!" passados uns minutos apareceu um empregado com caçadeira... a partir daí passei a ser motivo de divertimento "la dame qui avait un animal dans sa chambre..." diziam e riam com benevolência.

Não era difícil ser conhecida num hotel que tinha como hóspedes os três professores da Universidade Canadiana e os próprios donos, família de longínqua origem alemã, mas há muito radicada no país, que lá vivia com os seus filhos e que rapidamente me convidou para o seu recanto. Fiquei a saber que borboletas gigantes no cimo da porta tem significado de bom ou mau agoiro, e conheci uma das maiores colecções de pintura que um particular pode possuir em casa. Tive a sorte de me oferecerem uma peça que guardo aqui ao meu lado.

Não havia também dificuldade em arranjar pessoas para tomar conta da minha filha, a dificuldade era saber quem é que o tinha feito, porque todos levantavam o braço quando questionados sobre o trabalho de babysitter. Aprendi também que era escusado perguntar quem é que tinha feito isto ou aquilo, porque a resposta era óbvia. No caso do tomar conta, é claro, que eram todos. E foi aí que deixei a maior parte dos dólares que levava. Mas também foi durante essas alturas, em que à noite, limitada pela minha acompanhante de três meses, passava muito tempo no hotel e conversava com os empregados. E se eles tinham histórias!
Preocupavam-se com as doenças como a cólera que matava um filho, mas que também deixava mais comida para as outras bocas que havia em casa para alimentar. Esta racionalidade não é compreensível para um europeu ou para alguém que viva em abundância. Tal como não é compreensível que para comprar tabaco o táxi nos leve à gare marítima, buzine e do nada apareçam magotes de crianças que nos atiram para dentro do carro pacotes de Marlboro, e que sem percebermos o carro fica cercado e o dinheiro é disputado por mãos que já ninguém sabe de quem são. E enquanto o carro desaparece, aquelas crianças lutam e gritam e o taxista ri e nós choramos por dentro.
E com a noite chegam às portas dos hotéis, mães que acompanham e oferecem filhas, algumas ainda crianças, mas que são a recompensa de mais um pão no dia seguinte. E a naturalidade do acto torna difícil o nosso julgamento reprovador.
Gente, que um dia na sua simplicidade me explicava como comer o seu fruto preferido: "Tu prends le mango, tu cherches le couteaux, tu coupes le mango et tu manges en petits morceaux, comme çá! Tu vois? C'est très simple!"




E todos têm histórias e experiências de voodoo e conhecem gente que virou zombie. E têm medo! E se à noite a conversa no hotel era uma, durante o dia a conversa à volta da piscina era feita pelos familiares do pessoal diplomático ali estacionado, por um ou outro conhecido dos donos que utilizavam a piscina para lazer e também alimentavam algum favorecimento local. E as conversas que falavam da pobreza alheia, com desdém, também ensinavam os locais de compra geridos por marcas francesas e estrategicamente, localizados junto das casas dos brancos, para não parecer mal. Quem chega de cor branca a um país de pele maioritariamente escura, tem vergonha de mostrar riqueza. Com o tempo imagino que tudo se resolve e o branco e o preto entram apenas na noção de opostos mas iguais, desde que possam comprar nos mesmos sítios e lugares, o que no Haiti não era, nem é o caso.
O Haiti que eu conheci, já vivia abaixo do limiar de pobreza mas ainda não era o lugar de hoje. Era, apesar de tudo um país de gente corajosa, que não pedia esmolas, que tinha orgulho nos seus, que acolhia o visitante o melhor que sabia e que me deixou uma enorme saudade e também o sentimento de impotência perante aqueles que me continuaram a escrever cartas de duas linhas a pedir ajuda e auxílio para saírem dum país sem futuro.

2 comentários:
E que corda deu ao relógio, senhora... que post fantástico... atirou comigo para o Haiti sem nunca ter lá estado. :D
É que havia muitos relógios para dar corda.;)
Enviar um comentário