Quem visita Manila, não esquece o que vê. Há tempos falei do Haiti, país que conheço melhor e onde permaneci alguns meses. As pessoas vivem uma pobreza medonha, do tamanho que eu julgava impossível existir nos nossos dias. Em Manila, convivi com os últimos anos da presidência de Corazon Aquino. Era uma mulher extraordinária, que queria dar a volta a um país corrupto, pobre e fustigado pelas calamidades naturais. Amanhecia um dia de sol, para passadas umas horas as enxurradas levarem tudo à frente. No dia seguinte a lama misturava-se com os dejectos, com os mercadorias espatifadas e o mercado era a maior pouca vergonha que eu já vi. Dum lado as bancas e os seus vendedores, do outro os cavalos misturados com crianças, cães, galinhas e pelo meio carros com turistas, e comerciantes ambulantes que tentavam vender petiscos locais. E depois, a prostituição infantil para a qual não há palavras. Foi em Manila, que me pediram para revistar malas e carteiras à entrada do hotel, e que em cada corredor havia um polícia que nos identificava, para segurança de quem lá estava. A piscina tinha guardas e polícias que passeavam todo o tempo, misturando-se com os turistas que tentavam ser turistas e apanhar um pouco de sol. Era impossível uma mulher sair sozinha sem ser incomodada, conheci uma alemã que trabalhava para uma multinacional e que me convidou para conhecer a cidade. O luxo de ter motorista e belo automóvel, numa terra cheia de miséria é das situações mais confrangedoras por que me lembro de ter passado. Seguir à frente de todos, ter tratamento diferenciado nos armazéns e regressar à minha conferência cheia de colegas que, superiormente, não consideraram importante sair do hotel, foi uma das razões para aquela viagem ser a confirmação da superioridade dos países desenvolvidos e da falsa pretensão de ajuda a quem não é desenvolvido. Olhar para aquele grupo de conferencistas, que em representação da ONU dizia procurar soluções para os países desfavorecidos, foi igualmente motivo, para ficar a saber como funcionam os organismos internacionais a bem da comunidade local. A democracia pode ser instaurada pela força da revolução, mas um povo só vive democraticamente se lhe ensinarem a viver dentro dos princípios da nova situação sociopolítica. Há dias, as Filipinas tiveram mais uma tempestade natural e Manila ficou alagada. A população teve mais uma vez de recolher bens, tentar um abrigo e sobreviver. Para isso recorreu à ajuda internacional. Corazon Aquino morreu este ano, deixou o país com a democracia, as organizações internacionais continuam a fazer conferências, e o país está exactamente no ponto em que o deixei, faz agora 18 anos.
Por isso, quando vemos a nossa democracia em perigo, temos de escutar todos os sinais para nunca vivermos o caos das misérias miseráveis. Aliás, ter a democracia instalada e não ser democrata é uma péssima conjugação para qualquer país.
17 anos
Há 4 meses
12 comentários:
Muito bem dito GJ.
E acrescento que pena é que ainda haja tantos que acham que a democracia não é um bem valioso que tem de ser preservado dia a dia (e que, entre outras coisas, continuem convencidos de que a exercem abstendo-se de votar, ainda que a motivação não seja a preguiça mas um cartão amarelo/vermelho ao que fazem os "Senhores Políticos").
Invejo a sua experiência e visão do mundo, GJ, ainda que não lhe inveje o que viu. Já tinha ouvido dizer que as Filipinas são um dos países onde a miséria é mais impressionante. E é, de facto, quando se têm realidades dessas diante dos olhos ou na memória que é possível relativizar as coisas, distinguir o essencial do supérfluo e, sobretudo, minimizar os nossos certamente «nano-micro-dramas» nacionais. :-)
P.S.: Para mim, que vivo fechada numa redoma de horizontes muito estreitos, testemunhos como o seu são vitais. Obrigada.
Nada pode ser tido como adquirido. Esquecemo-nos disto tantas vezes, embalados nas distracções de
«bem-estar»... ou então optamos por fechar os olhos, pensando que são apenas uns sinais, que só vai acontecer aos outros e que nada vai mudar.
Excelente post. Muito obrigada, GJ.
Felicito-te por este post. É que cada vez é mais urgente que haja vozes que testemunhem e denunciem estas situações de miséria extrema, (todo o tipo de miséria) lado a lado com ricos, miseravelmente ricos.
Permite-me que transcreva dois excertos do teu post, que considero extremante elucidativos:
"A democracia pode ser instaurada pela força da revolução, mas um povo só vive democraticamente se lhe ensinarem a viver dentro dos princípios da nova situação sociopolítica."
E ainda:
"Aliás, ter a democracia instalada e não ser democrata é uma péssima conjugação para qualquer país."
E aqui tens o cerne da questão. A democracia sem democratas!
Fugidia, nunca perca os seus "valores revolucionários"
Beijo
Luísa, a sua visão do mundo não tem nada de fechado. Bem gostaria eu, de ser capaz de captar letras e imagens iguais ou semelhantes. E é uma das pessoas mais lúcidas que por aqui anda.
Obrigada, digo eu :)
Beijo
Austeriana, nada mesmo pode ser um dado adquirido para sempre. Nunca nos podemos esquecer de quem nem sabe o que significa adquirir.
Obrigada para si também pelas suas visitas e comentários.
Bj
Teresa, também penso que a última frase diz tudo. Obrigada pela citação e pelas palavras deixadas.
Gostei muito! :-)
Quando vivia em Macau fui às filipinas diversas vezes em trabalho e em férias e faço uma leitura muito aproximada da sua. Por vezes, à distância, fazemos juízos totalmente errados e infundados.
De qualquer modo, o país onde a miséria mais me tocou ainda foi a Índia. É um murro no estômago!
GJ, sabe que sou seu fã?)
Nunca fui à India, apesar de ter uma grande amiga indiana que conheci no Canadá. Todos os anos nos encontramos e planeamos fazer uma viagem juntas mas ainda não aconteceu. Durante uns anos, esta amiga representou o Canadá em negociações comerciais com a Índia. Segundo ela, é muito dificil um ocidental entender e adaptar-se ao país. Também é muito interessante ouvi-la falar sobre o conflito com o Paquistão.
RAA,:)
Estamos quites, porque eu também sou sua fã.
Abraço
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