17/09/09

A globalização da solidão

Em 1979 fui viver para o Canadá. Aterrei no mês de Janeiro, num dia em que os termómetros marcavam 19º negativos. Foi o meu primeiro impacto com o frio, a rudeza do clima e o recolhimento das pessoas. Nos países quentes e com famílias numerosas, o difícil é encontrar um momento de solidão tranquila. Pelo contrário, naqueles em que as temperaturas requerem que se esteja dentro de portas muitos dias do ano e muitas horas por dia, as pessoas tendem a ver-se pouco e a falar menos. No início, tudo era uma novidade, a cidade estava linda, branca, e com muito sol, com a claridade que é uma característica canadiana e um frio fininho que entra pelos ossos e parte as extremidades do corpo. Com o tempo pude verificar que também pode partir o coração por inteiro. Estando eu sozinha, com um pequenote que ainda não andava, um marido a estudar, uma casa vazia de móveis para limpar, sem automóvel para me deslocar, sem pessoas para conversar, sem telefone a tocar, sem dinheiro para passear, sem possibilidade de trabalhar e com todo o tempo do mundo à minha disposição, o silêncio das portas e do ar fazia-se sentir de forma pesada. Descobri, então, que para falar com alguém tinha de ser eu a iniciar a conversa. Até aqui, nada de especial para uma tagarela portuguesa. Mas, trocado o bom dia e o boa tarde, e o have a nice day, ficávamos por aqui com os anglófonos e falávamos o inglês macarrónico típico das pessoas de nacionalidades diversas e que tateiam o idioma. As lavandarias comuns e os jardins dos prédios ajudavam a conhecer outras pessoas, geralmente mães com filhos pequenos e companheiros universitários. As primeiras, que se tornariam amizades vinham da Venezuela e do Panamá. Mais tarde, juntaram-se pessoas da antiga Pérsia, da Índia, do Sri-Lanka, da Nigéria, do Líbano, da antiga União Soviética, da Roménia. Os europeus, conheci-os mais tarde na Universidade e através uns dos outros.
Os primeiros tinham uma coisa em comum, ninguém recebia cartas ou telefonemas, mas as caixas do correio estavam cheias de folhetos, catálogos, jornais gratuitos, informações diversas ou do take-away mais próximo. A partir daí era uma felicidade ver o correio, porque vinha carregada de correspondência anónima dirigida à minha excelentíssima pessoa. O hábito ficou de tal maneira que passei, a não só imaginar folhetos para outros, como a não resistir ao hábito de coleccionar peças de informação ou divulgação por todo o lado que passo. Guardadas junto a cada elemento e recordação de viagem estão os hotéis que nunca irei visitar, os restaurantes que podem dar jeito para um dia, a informação camarária de pequenas cidades que será pouco provável que volte a ver. Se aprendi que a solidão também pode ser um estado de espírito, que temos de ser nós a dar o primeiro passo para o alterar, também me agrada hoje ver a internet juntar o útil ao agradável, estreitando interesses comuns e relacionando o que não tinha voz nem palavra, nem som, nem cor. Também trouxe o desagradável e assim deitamos fora o que antigamente nos entrava apenas pelas vulgares caixas de correio. A globalização que nos tornou mais próximos sem nos conhecermos e os meios que agora nos chegam às caixas de correio são iguais, com a diferença que são virtuais. Fora o resto, tudo é idêntico, excepto no calor que faltava ao frio canadiano e que se encontra nas terras brandas e nas pessoas do sul. O silêncio também já o temos, e até os defeitos da solidão e do have a nice day. Quanto à publicidade, não a consigo deitar fora sem lhe dar pelo menos uma vista de olhos. Hábitos que ficaram e manias que nos acompanham.

14 comentários:

vbm disse...

:)) Tocante descrição
de um coração imigrante!

abraço,
vasco

Mike disse...

Mais um post ou dois e está explicada essa mania-paixão pela publicidade. ;)
Belo post, GJ. :)
Mas, se bem pergunto... o que faz a senhora ao computador? Não tem 55 jóias para comemorar? Eu, ainda na agência ainda vá que não vá, agora uma Grande Jóia... (risos) :D

fugidia disse...

:-)

Gostei de ler sobre estes silêncios e solidões, agora aqui partilhados entre todos que formamos esta comunidade tão rica e... quente :-)

Ana Paula Sena disse...

Gostei imenso de a ler :)

Lina Arroja (GJ) disse...

É isso mesmo Vasco, estas experiências deixam a palavra emigrante gravada no coração. E quando voltamos ficamos um pouco imigrantes e desejamos ser outra vez emigrantes. Obrigada pela sua visita :-)

Lina Arroja (GJ) disse...

Bem Mike, às vezes faço os trabalhos de casa por atacado. Foi o caso da programação horária...das agendas...(risos)
Um post ou dois diz...hum ...pode ser que sim ou talvez não;)

Lina Arroja (GJ) disse...

Fugidia, uma comunidade só faz sentido se tiver essas boas e desejáveis características. :-)

Lina Arroja (GJ) disse...

Ana Paula, o agrado é recíproco :-)

Luísa A. disse...

Gostei desta sua comparação de solidões, GJ. Embora prefira pensar que, neste sistema que agora usamos para nos comunicar, não há nada de virtual, não há um mundo inventado que copia realidades, porque eu sou de carne e osso e a GJ também. Apenas, em vez de falarmos ao telefone ou mantermos uma correspondência epistolar, nos escrevemos em «posts» e caixas de comentários. Para mim, que não sou «repentista», a forma de comunicação escrita é das preferidas, porque me permite pensar antes de «falar» (coisa que na comunicação oral me acontece pouco). ;-D
Falta-nos, naturalmente, o contacto pessoal. Mas note que há imensos «bloggers» que se conhecem e convivem. Como houve, no passado, muitos «ilustres» que, não se conhecendo, mantiveram convivências escritas (nada virtuais) que ficaram para a História. :-)

Lina Arroja (GJ) disse...

Luísa, a ideia da convivência escrita é muito interessante. E não tem nada de virtual, como diz. Estou de acordo, que a comunicação falada nos permite pensar e a forma como o fazemos nestes posts, torna mais fácil conviver com as divergências. O calor humano é verdade que se mantém desde que o grupo seja pequeno. O que aprecio na blogosfera é a capacidade de manter um diálogo e encontrar afinidades sem ter de conhecer fisicamente o outro. Ou seja, é um pouco como na rádio, idealizamos a figura através da voz e aqui é igual, porque cada um dá as informações que entende e pode deixar que os outros façam o entendimento que pretenderem. A ilusão da personalidade pode ser mais verdadeira.
Dou um exemplo ficcionado. Imagine que por relação familiar a minha pessoa acarreta uma certa imagem. Provavelmente não teria oportunidade de criar o meu espaço, sem atribuição de intenções ou de juízos de valor no contexto tradicional. Como blogger tenho maior liberdade, mas nada garante que a solidão seja menor.

Ricardo António Alves disse...

Eu também gostei imenso de a ler, GJ. A sua escrita tem uma limpidez que reflecte a clareza das ideias.
Quanto à convivência... Seria uma longa conversa -- que eu, às 4 da manhã, não estou preparado sequer para entabular :|

A disse...

Belíssimo texto. Há uma estranha familiaridade na "evolução" das redes sociais. Parece que, ao longo dos tempos existem comportamentos paralelos.
Gostei mesmo muito.Obrigada.

Lina Arroja (GJ) disse...

RAA, há palavras que valem um poema. Palavra que gostei :)))

Lina Arroja (GJ) disse...

Austeriana, essa evolução explica muito bem a reinvenção da cultura transnacional.