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Em 1979 fui viver para o Canadá. Aterrei no mês de Janeiro, num dia em que os termómetros marcavam 19º negativos. Foi o meu primeiro impacto com o frio, a rudeza do clima e o recolhimento das pessoas. Nos países quentes e com famílias numerosas, o difícil é encontrar um momento de solidão tranquila. Pelo contrário, naqueles em que as temperaturas requerem que se esteja dentro de portas muitos dias do ano e muitas horas por dia, as pessoas tendem a ver-se pouco e a falar menos. No início, tudo era uma novidade, a cidade estava linda, branca, e com muito sol, com a claridade que é uma característica canadiana e um frio fininho que entra pelos ossos e parte as extremidades do corpo. Com o tempo pude verificar que também pode partir o coração por inteiro. Estando eu sozinha, com um pequenote que ainda não andava, um marido a estudar, uma casa vazia de móveis para limpar, sem automóvel para me deslocar, sem pessoas para conversar, sem telefone a tocar, sem dinheiro para passear, sem possibilidade de trabalhar e com todo o tempo do mundo à minha disposição, o silêncio das portas e do ar fazia-se sentir de forma pesada. Descobri, então, que para falar com alguém tinha de ser eu a iniciar a conversa. Até aqui, nada de especial para uma tagarela portuguesa. Mas, trocado o bom dia e o boa tarde, e o
have a nice day, ficávamos por aqui com os anglófonos e falávamos o inglês macarrónico típico das pessoas de nacionalidades diversas e que tateiam o idioma. As lavandarias comuns e os jardins dos prédios ajudavam a conhecer outras pessoas, geralmente mães com filhos pequenos e companheiros universitários. As primeiras, que se tornariam amizades vinham da Venezuela e do Panamá. Mais tarde, juntaram-se pessoas da antiga Pérsia, da Índia, do Sri-Lanka, da Nigéria, do Líbano, da antiga União Soviética, da Roménia. Os europeus, conheci-os mais tarde na Universidade e através uns dos outros.
Os primeiros tinham uma coisa em comum, ninguém recebia cartas ou telefonemas, mas as caixas do correio estavam cheias de folhetos, catálogos, jornais gratuitos, informações diversas ou do
take-away mais próximo. A partir daí era uma felicidade ver o correio, porque vinha carregada de correspondência anónima dirigida à minha excelentíssima pessoa. O hábito ficou de tal maneira que passei, a não só imaginar folhetos para outros, como a não resistir ao hábito de coleccionar peças de informação ou divulgação por todo o lado que passo. Guardadas junto a cada elemento e recordação de viagem estão os hotéis que nunca irei visitar, os restaurantes que podem dar jeito para um dia, a informação camarária de pequenas cidades que será pouco provável que volte a ver. Se aprendi que a solidão também pode ser um estado de espírito, que temos de ser nós a dar o primeiro passo para o alterar, também me agrada hoje ver a internet juntar o útil ao agradável, estreitando interesses comuns e relacionando o que não tinha voz nem palavra, nem som, nem cor. Também trouxe o desagradável e assim deitamos fora o que antigamente nos entrava apenas pelas vulgares caixas de correio. A globalização que nos tornou mais próximos sem nos conhecermos e os meios que agora nos chegam às caixas de correio são iguais, com a diferença que são virtuais. Fora o resto, tudo é idêntico, excepto no calor que faltava ao frio canadiano e que se encontra nas terras brandas e nas pessoas do sul. O silêncio também já o temos, e até os defeitos da solidão e do
have a nice day. Quanto à publicidade, não a consigo deitar fora sem lhe dar pelo menos uma vista de olhos. Hábitos que ficaram e manias que nos acompanham.